Moisés da Rocha

O samba abre passagem para reverenciar Moisés da Rocha

No programa O Samba Pede Passagem, no ar há mais de quatro décadas, Moisés divulga o samba e segue na luta contra o racismo e pela democracia

E assim eu vou levar

Avante o meu cantar

Nos braços dessa vida irei me embalar

Seja onde for

Eu quero sorrir

O riso desse novo amor


É o meu samba pedindo passagem

Não é miragem

É sonho real

Afinal, pelo sim, pelo não

É questão de opinião

Poucos são aqueles que ouvem a composição de Mauro Diniz e Adilson Victor e não associam automaticamente ao programa O Samba Pede Passagem e ao apresentador Moisés da Rocha. No ar pela USP FM há mais de quatro décadas, o programa segue como referência para o samba de São Paulo.

Na metrópole que não para, quem passa pela esquina das ruas Brigadeiro Galvão e Dr. Albuquerque Lins, na Barra Funda, geralmente aos finais de semana, poderá observar um senhor sentado tranquilamente tomando sua cerveja ou seu traçado. Em meio à agitação daqueles que não desistem de travar a inglória luta contra o relógio.
Com o inseparável Ray-Ban aviador, aquele senhor imponente ao contemplar o tempo, tenta fazer a cidade ter seu ritmo, e não o contrário, pode até intimidar os desavisados, porém, como um verdadeiro griot, basta se aproximar que será de forma automática hipnotizado por sua voz e suas histórias. Falo de uma das principais figuras do rádio paulistano e do Brasil. Conversar com Moisés da Rocha é ter uma aula de cultura popular, de samba, de rádio e acima de tudo de resistência.

Moisés nasceu em 1942, na cidade de Ourinhos, no interior de São Paulo. Ainda criança, sonhava em ser cantor. Com o apoio de seus pais, logo começou a ensaiar no coral da Igreja Metodista. Aos 13 anos, já tocava em rodas de samba do interior, cabe destacar que a região foi fundamental para a construção do samba paulista, com sua batida singular e seu sotaque.

Sobre a infância no interior e a nascente relação com o samba, Moisés nos conta o seguinte: “Tive minha formação em uma Igreja Metodista. Meu irmão e eu tocávamos num bloco em Ourinhos e algumas pessoas comentavam: que coisa horrível, os filhos do Dito Rocha nessa coisa de malandro. Apesar da língua ferina de alguns, seguimos firmes”. No final da década de 1950, como muitos jovens da época, nosso personagem deixa a cidade natal, partindo para construir sua vida na metrópole. Após uma breve passagem por São Vicente, Moisés desembarca na capital e em pouco tempo já estava entrosado nas rodas de samba da cidade. Morando na região da Brasilândia, Moisés fez das ladeiras e beiras de campo da região sua Universidade do Samba.

Ao completar a maioridade, acabou servindo por um período como pracinha no canal de Suez, no Oriente Médio. Junto a seus colegas de farda, o timbre de sua voz e a dicção clara logo chamaram a atenção, levando o jovem Moisés a descobrir uma nova vocação. Nos intervalos da missão internacional, conseguia tempo para participar do conjunto amador Brazilian Boys, ocupando o posto de crooner. O reconhecimento, mesmo que por hora apenas entre seus pares, e as lembranças das batucadas da Pauliceia, despertou em nosso personagem a vontade de viver de música.

De volta ao país, com 23 anos, o jovem decidiu então ir atrás de seu sonho. Sem contatos no meio artístico, resolveu ligar para a rádio Cometa e, para sua surpresa, conseguiu agendar um teste. Segundo Moisés, o início de sua carreira foi marcado também por um toque de sorte: “Fui ver um horário para gravar na Cometa, queria muito um teste e, quando liguei, o Domingos De Lello, então diretor da emissora, disse: saiu um locutor aqui e, conversando com você, acho que você se daria bem”. De Lello não errou em sua avaliação, e em 1967 nosso personagem começava sua carreira de radialista.

Desde então, seu trabalho nunca se resumiu apenas ao microfone. Moisés nunca foi o locutor que chegava no estúdio e realizava seu trabalho friamente. Antes do programa que o consagraria, não era difícil vê-lo pelas madrugadas do centro paulistano buscando pautas para o programa da manhã seguinte. Como repórter, partia sem medo para a rua e assim foi percorrendo terreiros, escolas de samba, botecos, comunidades esquecidas pelo Estado, casas elegantes, onde os mesmos que ignoravam a população marginalizada regojizavam-se em seus fartos banquetes.

Moisés relembra que ao longo de sua trajetória teve a oportunidade “de entrevistar desde empresários como Antônio Ermírio de Moraes, esportistas como o verdadeiro pé de anjo do Corinthians, o Basílio e grandes nomes da música como: Dick Farney, Lúcio Alves, Nelson Cavaquinho, Geraldo Filme, Zeca Pagodinho, o recém-falecido Téo Azevedo e tantos outros personagens da música brasileira”.

Algo que Moisés visa sempre discutir, seja em seu programa ou em entrevistas, é a questão racial. Como já dito, após a estreia na Radio Cometa, passaria pela Jovem Pan, onde, ao lado de nomes como Fausto Canova, Joseval Peixoto e o dramaturgo Chico de Assis, formaria seu imenso no rádio paulistano. Antes de chegar à USP, ainda passaria pela Rádio Record, e aí a questão racial vem à tona: “Como eu sempre era o único negro e ganhava salário mínimo, tinha de ter mais fontes de renda. Ao me aperfeiçoar, transitei por diferentes emissoras como assistente de produção, repórter, locutor”, relembra.

Ao mesmo tempo, em que atuava em várias frentes no rádio, nosso personagem literalmente atuava nos palcos paulistanos. Além da amizade com Chico de Assis, a década de 1970 é marcada por sua aproximação com o dramaturgo santista Plínio Marcos. Dividindo o palco com nomes como Aldo Bueno, considerado por Moisés o Denzel Washington brasileiro, João Acaiabe e Francisco Milani, Moisés participaria de uma montagem clandestina de Barrela realizada no TBC (Teatro Brasileiro de Comédia) em 1979 para relembrar os vinte anos de estreia e proibição do texto. Participaria ainda da montagem de Jesus Homem, encenado no palco do TAIB (Teatro de Arte Israelita Brasileiro) pelo mítico Bando, criado por Plínio.

Entre uma reportagem, um ou outro trabalho técnico e voos pelo teatro, em 1977, surgiria o convite para integrar a equipe da nascente Rádio USP. A proposta inicial era para atuar como programador, porém mais uma vez sua voz ganharia destaque. “Com essa voz, você tem de entrar no ar”, os colegas diziam. E assim, em 1978, estreava O Samba Pede Passagem, ainda como um grande bloco que encerrava a programação matinal da emissora, fazendo a transição para o período vespertino.

Moisés lembra que, desde o começo, seu programa nunca foi um vitrolão: “O programa nasceu como reação ao preconceito contra a cultura afro-brasileira. Nunca abri mão de divulgar valores culturais de matriz africana, de dar voz à periferia, à juventude periférica”.

Nas décadas de 1980 e 1990, O Samba Pede Passagem virou também referência da vida noturna da cidade. “Quando Moisés da Rocha anunciava uma festa, era certeza de casa lotada. Sucesso garantido”, atesta um produtor de eventos. O sucesso não ficava restrito ao samba, além da famosa caravana do Samba Pede Passagem que contava com músicos como Osvaldinho da Cuíca e Branca Di Neve, é iniciada uma sólida parceria com a escola de samba Camisa Verde e Branco, na época capitaneada pelo comandante Tobias. Essa parceria serviu para que Moisés da Rocha criasse para o programa quadros como o Cantinho do Rap e a Sessão Balancê, contribuindo para a consolidação do nascente movimento hip hop e o já tradicional samba rock.

O programa chegou a ser diário e, atualmente, vai ao ar aos sábados e domingos, entre 12 e 14 horas. Em meados dos anos 2000, a emissora cogitou retirar o programa da grade, porém, diante da indignação expressa não apenas por sambistas, mas também por parlamentares, intelectuais, grupos da sociedade civil e principalmente ouvintes, a direção da emissora recuou.

Sobre essa situação, Moisés relembra que não foi a primeira vez que a burocracia universitária pensou em encerrar a veiculação do programa. Segundo o radialista: “Desde a estreia do programa, houve preconceito e até certa perseguição. Setores da USP achavam que o programa não condizia com a universidade, que não tinha linguagem acadêmica”. Para garantir a permanência do programa, além da sociedade civil e a força de seus ouvintes, foi fundamental o apoio de setores mais progressistas da comunidade uspiana como a Escola de Comunicações e Artes (ECA).

Moisés da Rocha também é um dos responsáveis pela difusão e sucesso daquilo que ficaria conhecido como pagode de fundo de quintal. Além do grupo homônimo, nomes como Zeca Pagodinho, Jovelina Pérola Negra, Reinaldo e Arlindo Cruz tiveram O Samba Pede Passagem como plataforma de lançamento. Bira Presidente, integrante do grupo Fundo de Quintal, relembra que: “O Moisés foi um dos primeiros a dar credibilidade ao Fundo de Quintal. Depois, todas as portas se abriram”. Zeca Pagodinho é outro personagem que atesta o pioneirismo do radialista: “Em São Paulo, comecei com o Moisés da Rocha, que tocou o Raça Brasileira logo que foi lançado. Ele lançou toda uma geração”.

Nomes consagrados também contaram com o apoio de Moisés e seu programa. Como a cantora, compositora e hoje deputada Leci Brandão: “Ele é meu pai musical. Em 1985, estava há anos sem gravar quando lancei meu disco. Ele tocou e o disco estourou. Devo a ele meu retorno. O samba deve muito a Moisés da Rocha”.

Se iniciei o perfil do nosso personagem com um trecho da música que é prefixo de seu programa, encerro com a frase de seu amigo Plínio Marcos repetida semanalmente por Moisés: “Um povo que não ama e não preserva suas formas de expressão mais autênticas jamais será um povo livre”. Moisés da Rocha é a síntese da frase cunhada pelo dramaturgo santista, um verdadeiro griot que ama e luta pela preservação do samba e do carnaval, e acima de tudo um homem que ressalta a importância da difusão do conhecimento e da cultura para a verdadeira emancipação do povo brasileiro.



Este artigo foi originalmente publicado no site Jornal GGN