Mario Leite

Mario Leite, um cronista do samba paulistano, por Daniel Costa

Após andanças pelas rodas de São Paulo, Mario disponibilizará em breve nas plataformas digitais seu álbum de estreia, Companheiro de Maria.
Quem tem por hábito frequentar rodas de samba, com toda certeza tem aquele amigo ou conhecido que canta a plenos pulmões clássicos como, “Não deixe o samba morrer”, canção de Edson Conceição e Aloisio, eternizado por Alcione em seu álbum de estreia “A voz do samba”, lançado em 1975 pela Philips. Ou clássicos contemporâneos, como “Minha fé” do mestre Murilão da Boca do Mato e gravada por Zeca Pagodinho. Porém, se as rodas são espaços que eternizam canções de compositores e intérpretes com abertura nos meios de comunicação de massa, também é o espaço que acolhe aqueles compositores que batalham dia após dia, roda a roda, mandando suas brasas, divulgando e lapidando suas criações, esse é o caso do nosso personagem.
Aqueles que já assistiram alguma roda do Kolombolo Diá Piratininga ou do Samba da Vela, para citar apenas duas, com certeza presenciaram a catarse causada por versos como, “São Jorge guerreiro na umbanda é Ogum” ou o “Está chegando o Carnaval, uma festa popular”, em comum entre as duas canções está seu autor, o cantor e compositor Mario Leite, que após duas décadas de andanças pelas rodas de São Paulo disponibilizará em breve nas plataformas digitais seu álbum de estreia, Companheiro de Maria.

Composto por dez faixas, o álbum gravado de forma independente nos estúdios da Fábrica de Cultura do Itaim Paulista e Sapopemba traz para o ouvinte uma seleção de composições que buscam homenagear as mulheres e seu universo. Ao escutar Companheiro de Maria, e compreender o conceito proposto por Mario Leite, o ouvinte encontrará proximidade com álbuns como o balançado, As mulheres de Miltinho (Odeon, 1968), onde o genial Miltinho interpreta clássicos como Emília (Wilson Batista e Haroldo Lobo) e A Rita (Chico Buarque) acompanhado por arranjos do maestro Nelsinho e Um nome de mulher (RCA, 1975), álbum onde o cantor Lúcio Alves, figura de destaque no cenário do samba canção e pré-bossa nova surge ao lado do maestro Chiquinho de Moraes cantando clássicos como Ana Luíza (Tom Jobim), Juraci (Antônio Almeida e Ciro de Souza) e Helena, Helena, Helena ( Alberto Land).

Cabe destacar que ao ouvir os três álbuns em conjunto poderá ter-se a dimensão de como a mulher é vista na canção popular ao longo do século. Assim, se em meados da década de cinquenta o compositor desejava uma mulher que soubesse lavar e cozinhar, como a já citada Emília. No século XXI, a Maria cantada por Mario, trabalha, batalha e em paz se mantém, independente de ter ou não um companheiro, e mais, hoje compõem, cantam e cada vez mais ganham espaço e reconhecimento pelas rodas da cidade.

O álbum é aberto com a faixa que da título ao disco, em Companheiro de Maria podemos observar o lado cronista do compositor, um atento observador do cotidiano capaz de transformar algo que aos olhos de um observador comum poderia soar como irrelevante. Além desse olhar direto para o cotidiano, Mário acredita que o tempo contribui de forma significativa para a maturação de suas composições. Como exemplo cita a canção Axé pra São Jorge, o samba composto no começo dos anos 2000 surgiu durante uma das famosas rodas da rua do samba, projeto que marcou época na Rua General Osório. Composta em parceria com Emerson Urso e Hélio Rubi, o samba foi feito em pouco mais de duas horas, tempo que os músicos tinham para retornar a roda com o samba pronto, feito no dia 23 de abril, dia de São Jorge a composição do trio retrata aquele que talvez seja o santo católico de maior popularidade no país e que em diversas regiões do país é sincretizado com o orixá Ogum.

Pérolas do Carnaval é outra canção composta por Mario que passou por um longo período de decantação, apresentada originalmente no Samba da Vela, a canção, uma declaração de amor de um verdadeiro folião aos festejos carnavalescos, momento em que o profano vira sagrado e o sagrado vira profano, fazendo da festa de Momo um momento em que aqueles que ocupam as ruas são contagiados por essa magia única. A canção foi gravada pela cantora Ione Papas no disco Na linha do samba, lançado em 2007 e pelo Conjunto Candeeiro, a canção hoje também é cantada na abertura dos desfiles do Kolombolo Diá Piratininga no carnaval como uma espécie de pedido de passagem para que o cordão possa ocupar as ruas.

Além do lado cronista, Mário acredita que suas composições podem e devem servir como instrumento para dar voz aqueles que ainda hoje seguem sem ter a sua fala legitimada. Segundo o compositor, a arte além de alimentar a alma deve também servir como um instrumento político. Esse lado engajado do compositor pode ser observado por exemplo na canção Pátria sem memória, que retrata a questão da queima de documentação por Rui Barbosa após a abolição da escravidão. Em dezembro de 1890, menos de dois anos após a abolição da escravatura, o então ministro da Fazenda da República, Ruy Barbosa, assinou um despacho oficial ordenando que toda documentação relativa à escravidão fosse enviada ao então Distrito Federal para ser destruída. A iniciativa à época despertou toda sorte de críticas por parte da sociedade que via na medida tomada por Barbosa a tentativa de apagar o passado escravagista do país.

Voltando ao álbum de Mario Leite, após a faixa título o compositor apresenta composições dedicadas a ancestralidade negra como a bela Axé para Vovó Maria Conga, ou a homenagem a grande dama do samba Dona Ivone Lara. Em Tia Dita e tia Ana, Mário presta homenagem a duas irmãs que frequentam o Samba da Vela, através das duas irmãs o compositor presta homenagem a todas yabás que frequentam as rodas da cidade. Assim, cantando para Soraia, Silmara, Débora, Isabel e sua mãe Carmem, Mário não canta apenas mulheres, mas sim o amor, o desamor, os encontros e despedidas e a luta cotidiana dessas bravas mulheres.

Como bem disse o compositor e baluarte da escola Pérola Negra, Murilão da Boca do Mato: “hoje tem muito macumbeiro que nunca foi em uma macumba, cara que não sabe versar e se diz partideiro e muito sambista que nem sambeiro é”, infelizmente não há como discordar do mestre partideiro, porém em um cenário onde o imediatismo e a sanha para ter visibilidade imperam, ainda temos verdadeiros sambistas como Mário Leite que feito um sambista a moda antiga sabe respeitar a liturgia do samba, e acima de tudo sabe lidar com o tempo de uma forma que hoje poucos de nós sabemos lidar. Seu álbum de estreia demorou para sair, porém como tudo tem seu tempo e hora, o momento chegou.

Saudemos esse grande personagem das rodas paulistanas! Viva Mário Leite!

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Este artigo foi originalmente publicado no site Jornal GGN