Geraldo Filme

Geraldo Filme, e os caminhos do samba da Paulicéia – o Paulistano da Glória

Em 1972, em plena ditadura civil-militar, Geraldo compôs para a Unidos do Peruche o samba-enredo “Heróis da Independência”
Qualquer pessoa que tiver interesse em descobrir os caminhos e descaminhos do samba de São Paulo, inevitavelmente terá que passar por regiões como o Bixiga, Barra Funda, Casa Verde, Vila Maria, Glicério e Liberdade; lugares históricos e de grande importância enquanto espaços de sociabilidade para a população negra paulistana. Geraldo Filme, foi um personagem que transitou por todos esses territórios, não só forjando sua identidade enquanto sambista, mas também enquanto liderança negra e do próprio samba, diante disso vamos abordar sua relação com um lugar específico; o Paulistano da Glória, antigo cordão carnavalesco e escola de samba da cidade de São Paulo, fundado por sua mãe Augusta Geralda e localizado na rua de mesmo nome no bairro do Cambuci; além de possuir um dos melhores salões de festas da capital, a oficina do samba como também era conhecida, marcou a cidade como ponto de referência enquanto espaço de sociabilidade e conscientização da população afrodescendente paulistana.

Geraldo Filme de Souza nascido na capital paulista em 1927, filho de Sebastião e Augusta Geralda foi batizado em São João da Boa Vista, região de origem dos seus pais, tal fato, assim como as reminiscências dos cantos africanos que eram ensinado por sua avó, ficaram como marcas na trajetória desse baluarte do samba paulista. Ainda criança, Geraldo já mostra personalidade ao compor seu primeiro samba, “Eu vou mostrar”, a canção composta pelo menino, foi o meio encontrado para responder ao seu pai que o samba de São Paulo também tinha sua qualidade e não ficava devendo nada ao samba praticado na então capital da república.

As origens do Paulistano da Glória

O Clube de Baile Paulistano da Glória, fundado na década de 1920 pela mãe de Geraldo Filme, a qual ele conta em depoimento, que era uma talentosa dançarina de schottisches e que já havia ganhado diversos concursos de dança em casas noturnas da cidade, espaços onde não se dançava somente o samba, mas cujos frequentadores divertiam-se ao som de qualquer hit dos discos e das rádios, o que também acontecia no carnaval de rua. Antiga festeira do interior, Dona Augusta era também organizadora de caravanas que se dirigiam todo ano aos festejos de Pirapora, essas comemorações ficariam marcadas na lembrança do compositor, que além de reafirmar a importância das festividades para a formação e consolidação das especificidades do samba paulista, também seria representada de forma autobiográfica em sua canção “Batuque de Pirapora”. Ao analisar a composição de Geraldo Filme, o pesquisador Mario Santin Frugiuele explica que, “quando menino, sua mãe realmente levou-o à procissão do Bom Jesus, onde deveria vesti-lo de anjo para pagar uma promessa: seu filho fora curado de grave doença. Aos quatro anos de idade a tal doença acometeu o menino e Dona Augusta, então, viu-se obrigada a recorrer à jurisdição divina, prometendo levar seu filho para agradecer a graça alcançada. Em Pirapora, ao se unirem ao cortejo para fazer o acerto com o credor, o garoto foi proibido de participar da procissão por ser “menino preto”. Mulher decidida, Augusta levou o filho para os profanos barracões, onde não seriam discriminados; é lá que ele conhece os segredos do samba”.

O ponto de partida para a criação do Paulistano ocorreu logo após a mãe de Geraldo ter feito uma viagem à Europa com os patrões para quem trabalhou como cozinheira; o compositor e músico Osvaldinho da Cuíca relembra que “em meados dos anos 1920, Augusta Geralda viajou a Europa com a família Penteado, tradicional família da elite paulista, onde trabalhava, e tomou contato com o fervilhante movimento sindical de lá”. Assim, após travar contato com os movimentos sindicais dos operários europeus, Augusta retorna a São Paulo com a ideia de criar um espaço de lazer para as cozinheiras e empregadas domésticas da região, em sua maioria mulheres negras, e que funcionaria, nas palavras da pesquisadora Bruna Queiroz Prado, “como um ponto de encontro de mulheres trabalhadoras, com fins recreativos e de mobilização política”. Nascia, então, o clube, situado no bairro da Liberdade, que viria a originar na década de 1940, o cordão carnavalesco de mesmo nome no qual Geraldo iniciaria sua vivência mais ativa enquanto compositor. De acordo com o próprio Geraldo, “a Paulistano da Glória pra mim representa muito, que faz lembrar minha mãe”. A influência de Dona Augusta e do próprio Paulistano da Glória será decisivo na trajetória e no posicionamento político que Geraldo Filme terá ao longo de sua vida, como afirma Bruna Queiroz , “essa afinidade com a mãe, a quem ele dedicou toda a sua bagagem cultural, o faria levantar a bandeira do feminismo e do comunismo, tendo sido um confesso admirador de mulheres como Luiza Erundina, afirmando à sua amiga e companheira de trabalho, Nanci Frangiotti, que a resolução para os problemas do mundo estava na tomada do poder pelas mulheres”.

Além da influência política, a atuação de sua mãe enquanto organizadora de espaços musicais na capital influenciaria Geraldo ao longo de sua caminhada, Dona Augusta ficaria conhecida também pelos saraus que duravam a noite inteira em sua pensão, relatos confirmam a variedade de ritmos que passavam pelas reuniões promovidas pela mãe de Geraldo, assim, em uma mesma noite quem passasse pela pensão poderia ouvir desde o cururu ponteado na viola até o choro que fazia sucesso nas rodas da cidade e os pontos de demanda cantados nos sambas de bumbo do interior, a mãe de Geraldo era ainda responsável pelos bailes de gafieira que aconteciam no salão do Paulistano da Glória. Tais acontecimentos levariam Geraldo Filme a atribuir, em diversas entrevistas, sua bagagem cultural a ela, afirmando, pois, que sua musicalidade estava no sangue. Em trecho de entrevista do próprio Geraldo, recuperada por Bruna Prado, o compositor relembra a influência desses episódios em sua formação, “o pessoal chegava lá de madrugada e meu pai pedia pra minha mãe fazer comida. Daí ela ficava aborrecida e dizia meu filho não vai ser músico. Mas no fim ela me incentivava. Quando me via cantando nas escolas dava bronca, mas incentivava. Eu compunha só com caixa de fósforo. Desde garoto fazia melodias e versos e mostrava. Era desinibido e os grupos me acompanhavam. Minha mãe é que participava mesmo da coisa ativa, da cultura popular, da coisa negra; quem conhecia mesmo”.

Segundo o professor e compositor Luiz Henrique Toledo em trabalho ainda inédito sobre Geraldo Filme, foi em 1946, “pouco tempo após o surgimento das primeiras escolas de samba de São Paulo, que o clube de baile Paulistano da Glória fundado, entre outras pessoas, pela mãe de Geraldo, transformava-se em cordão carnavalesco, por liderança do italiano Vitucho Rossi, o Vitucha”. Cabe recordar ainda que foi nesse espaço que Geraldo Filme participou, pela primeira vez, de uma ala oficial de compositores, e ainda onde conheceu a passista Alice de Souza, com quem se casou e teve seu primeiro e único filho, Ailton, em 1957.

Ainda sobre o Paulistano da Glória, o sambista Nelson Crecibeni Filho relembra que “o Paulistano da Glória foi uma escola de samba que basicamente só fez enredos muito ligados à raiz da negritude paulista e paulistana. Ou seja, se não resistiu à transformação em escola, seria por obra de Geraldo que o cordão se manteria como um foco de resistência cultural paulista e negra, tendo inclusive sido oficializada como escola no dia 13 de Maio. A sede da escola foi apontada, ainda, como um reduto de intelectuais de esquerda”. É o jornalista e escritor Mouzar Benedito que relembra a convivência entre os diversos agrupamentos de esquerda no salão, “o Paulistano da Glória era o ponto da esquerda todas as sextas-feiras. A gente olhava e já ironizava: Aquela mesa ali é do Partidão, aquela outra é do PC do B, a seguinte é do MR-8…”.

Em 1972, em plena ditadura civil-militar, Geraldo compôs para a Unidos do Peruche o samba-enredo “Heróis da Independência”, apesar do título que poderia parecer ufanista aos olhos de um desavisado, o samba custou a Geraldo uma detenção para “averiguação” no DOPS, e a invasão da quadra da Unidos do Peruche pela Polícia Militar. Ao longo do samba, Geraldo lançava verdadeiros petardos contra o regime vigente em versos como: "Sai do teu caminho, meu Brasil. Alerta, mocidade. Para manter acesa a chama da nossa liberdade”. Para Osvaldinho da Cuíca, “a própria formação de Geraldo explica, em boa parte, os motivos de seu combate nessas trincheiras. Na infância, pôde acompanhar os passos da mãe na organização do Paulistano da Glória e apreender o sentido da legítima mobilização popular”.

Apesar de ter dado início a sua caminhada pelo mundo do samba na agremiação do Cambuci, Geraldo foi integrante e compositor da Colorado do Brás, da Unidos do Peruche, Camisa Verde e Branco e Vai-Vai. Em 1969, segundo Osvaldinho da Cuíca, “graças às suas boas relações, Geraldo, que então trabalhava na Federação das Escolas de Samba, foi convidado para gravar o primeiro LP de sambas-enredo de São Paulo, em parceria com a cantora Carmélia Alves”. Geraldo Filme regressaria ao Paulistano em 1973, permanecendo na escola até 1978, período onde segundo Luiz Henrique Toledo, “ele relata um profundo desgosto pela falta de clareza das apurações dos desfiles, denunciando o envolvimento das escolas com pessoas de influência política e com o jogo do bicho”. Os sambas-enredos que Geraldo compôs para a escola foram “Praça da Sé” (1974), “Legado do velho Zumbi” (1975), “Porto feliz, “berço das monções” (1976), “Mitologia Afro-brasileira” (1977) e “Epopeia da Glória” (1978), estes dois últimos em parceria com Geraldo Muraca. Em 1980, já fora da escola, compôs o enredo “Que gente é essa?”.

Mesmo respeitado e reconhecido no universo do samba desde a juventude, será apenas na década de 1970, ao iniciar a conhecida parceria com o dramaturgo Plínio Marcos que sua obra passará a alcançar um público maior. Em 1971, integrou o elenco do musical “Balbina de Iansã”, ao lado de outros sambistas como Jangada, Silvio Modesto e Talismã; viria ainda a participar com Zeca da Casa Verde e Toniquinho Batuqueiro do espetáculo “Humor Grosso e Maldito das Quebradas do Mundaréu”, que culminaria no lançamento pela gravadora Continental do álbum “Plínio Marcos em Prosa e Samba”. O único álbum solo do compositor, intitulado “Geraldo Filme”, lançado pela gravadora Eldorado, até hoje é tido como uma referência para quem pretende percorrer os caminhos do samba da paulicéia, pois através de suas composições, Geraldo trouxe a público além da sua ancestralidade todos os sotaques do samba paulista. Ainda gravaria na Eldorado o seminal “O Canto dos Escravos”, ao lado da rainha quelé Clementina de Jesus e da portelense Tia Doca.

Geraldo faleceu vitimado por complicações da diabetes em 1995, nesse período residia na região oeste da capital, especificamente na COHAB Educandário; em 1998 parte do seu legado seria revisitado através do documentário Geraldo Filme dirigido pelo cineasta Carlos Cortez; recentemente o compositor ainda foi homenageado ganhando uma estátua na região da Barra Funda , próximo a pontos emblemáticos do samba paulistano como o lendário Largo da Banana e a quadra do Camisa Verde e Branco.

Encerro esse pequeno perfil com as palavras do sambista Osvaldinho da Cuíca, revelando as diversas faces desse grande personagem do samba de São Paulo: “Há um outro Geraldo Filme que não dos shows, discos e festivais: é o ativista das associações carnavalescas paulistanas. Este é, também, o que conseguiu unir as diversas agremiações em torno de uma causa comum, o crescimento do carnaval paulistano, rompendo antigas rixas e o isolamento em que viviam. Este é, ainda, o homem que teve mais importância para o nosso samba, a cabeça pensante dos cordões e escolas de samba, com sua luta ferrenha contra a pasteurização dos desfiles, contra o desprezo à cultura negra paulista, contra a opressão política. Sua atuação nos bastidores, porém, sequer ameaça ofuscar o brilho de seu trabalho “prático” nas agremiações carnavalescas, em que criou boa parte dos sambas-enredos mais significativos do carnaval paulistano, entre eles: “Festa dos Orixás”, do Paulistano da Glória, “Tebas”, “Rei Café” (em parceria com B. Lobo) e Tradição e Festas de Pirapora, no Unidos do Peruche e “Solano, Vento Forte Africano”, no Vai-Vai.”



Este artigo foi originalmente publicado no site Jornal GGN - Publicado em 13 de outubro de 2022

Para saber mais:
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  • Bruna Queiroz Prado. A passagem de Geraldo Filme pelo “samba paulista”: narrativas de palavras e músicas. 2013. Disponível em: Acesse Aqui
  • Lígia Nassif Conti. A memória do samba na capital do trabalho: os sambistas paulistanos e a construção de uma singularidade para o samba de São Paulo (1968-1991). 2015. Disponível em: Clique para ver a Tese
  • Mario Santin Frugiuele. Batismo de Bamba. 2013. Disponível em: Clique para ler arquivo pdf online ou baixá-lo
  • Osvaldinho da Cuíca e André Domingues. Batuqueiros da Paulicéia: enredo do samba de São Paulo. 2009. Compre Aqui